VISUALIZANDO AS VOZES DE NOSSO
CORAÇÃO
Os fundamentos visionário e
artístico da educação tribal
Visão geral
No
desenrolar da educação indígena, os contextos visionário e artístico
compartilham uma relação mutuamente recíproca. De fato, eles se interpenetram
um no outro no compartilhamento e na elaboração do sonho, da imagem e da
resposta criativa. Suas formas de expressão podem se diferenciar, mas suas
raízes de significação refletem e celebram uma alquimia interior do
artista/visionário cuja tarefa se torna aquela da representação, do
compartilhamento e da celebração dessas raízes. É o sonho divino, e a
representação de sua essência através de imagens simbólicas, que transforma
ambos artista/visionário e usuário em um modo significante e comunica algum
sentido significante. A visão e a arte estruturam e trazem à compleição um processo
transformativo de aprendizado e desenvolvimento. A visão e a arte refletem a
realidade dos humanos enquanto seres criativos, imaginativos e plenos.
Os
caminhos da visão e da arte podem ser rastreados de volta à região do sonho e
do mito, que são a origem e a motivação para a expressão criativa. O primeiro
visionário, o primeiro artista, foi ninguém menos que o primeiro pajé, que
santificou e legitimou sua visão através do sonho e do mito.
“Os
índios Blakcfoot nos contam que foi o Homem Velho quem lhes mostrou como fazer
tudo de que necessitavam. ‘Na base há sempre uma revelação divina, um ato
divino, e o homem tem apenas a ideia brilhante de copiá-lo’... O primeiro
rei-herói nascido-deus de todas as nações e raças – como Osíris no Egito e
Quetzalcoatl no México – foi aquele que ensinou as artes e mostrou aos povos
como fazer utensílios.”
De
fato, é ao Primeiro Pajé que são atribuídas as visões orientadoras, as artes
sagradas, o conhecimento da medicina, da caça, da construção, do aprendizado e
da vida em determinado ambiente. O pajé foi o primeiro guardião de sonhos, o
primeiro artista, o primeiro poeta, o primeiro caçador, o primeiro médico, o
primeiro dançarino, cantor e professor. Enquanto o pajé personifica o
visionário e o artista arquetípicos, estes são os potenciais que permanecem em
cada um e em todos nós, cada homem, cada mulher, e cada criança. Os povos
tribais entenderam e celebraram tais potenciais como uma vocação integrante do
aprendizado, do ser, e do tornar-se completo.
Através
do encorajamento, através do ritual, através do treinamento e da prática, os
povos tribais formaram e guiaram esta reflexão do divino em cada um.
Este
capítulo segue a trilha do visionário e do artista da América indígena. A primeira trilha revela a natureza do
sonho e das visões enquanto vistas através dos olhos e das palavras dos
visionários e dos artistas ameríndios, tanto do passado quanto do presente. A segunda trilha explora a função central
da visão no contexto dos esforços educativos tribais. A terceira trilha reflete sobre a alquimia do processo criativo desde
a perspectiva da orientação e da transformação. A quarta trilha adentra o reino da Cerimônia das Artes, tanto
enquanto processo quanto enquanto contexto para aprendizado e entendimento
profundo entre os povos indígenas.
De
cada uma das trilhas mencionadas irradia anéis concêntricos que se sobrepõem,
não apenas as outras trilhas, mas também os outros fundamentos do mito. A
tríade do mito, da visão e da arte ressoa os fundamentos do ambiente, do afetivo
e do comunal. O todo integrado da educação indígena se torna mais aparente
quanto mais exploramos a dimensão do “lugar de que falam os povos indígenas.”
Criando através do sonho e da visão
ameríndia
Sonho
e visão são uma dimensão integrante da criação artística. Para os povos
indígenas, existe um enorme corpo de crenças relativas à natureza dos sonhos e
da visão. Este corpo de crenças é ele mesmo muito antigo, com suas raízes sendo
lançadas há milhares de anos durante a explosão criativa do Paleolítico
Superior. Foi quando Neandertais e
Cro-Magnons começaram a figurar seus sonhos nas paredes das cavernas, na
argila, na madeira e na pedra. Deste diverso e extenso corpo de crenças, a
compreensão de que os sonhos representam a vida de nosso espírito é o mais
comumente sustentado e representado. Um dos fundamentos da vida espiritual
Lakota é que buscar uma visão através da execução dos rituais adequados, do
jejum e do sacrifício, leva o indivíduo ao contato com o mundo dos sonhos e a
energia espiritual contida aí.
Entre
os Lakota, os anciões dizem que tudo consiste de quatro contrapartidas
espirituais únicas, ainda que integradas. Tais contrapartidas são similares ao
que os teólogos ocidentais chamam de “almas”. A primeira destas almas é chamada
“Niya” (sopro de vida) e é a essência que anima todos os seres e entidades. A
segunda contrapartida é chamada “Nagi” e é similar à personalidade única que
cada pessoa ou entidade ostenta, seja planta, animal, ou outra forma material.
A terceira alma é chamada “Sicun” e é aquela propriedade especial, poder, ou
modo de ser que a distingue como um grupo ou família. Por exemplo, Urso Pardo,
Veado do Rabo Branco, Abeto Azul, Grama Doce ou Pedra Obsidiana caracterizariam
grupos distintos ou entidades com traços e características particulares. A
quarta alma, “Nagila”, é a energia básica universal que percorre todas as
coisas; é a energia fundamental do universo, o sopro do Grande Mistério, o
“Takuskan Skan” em todas as coisas.
Durante
a Dança do Sol Lakota, o “Hanbleceya” (clamando por um sonho) é a hora em que,
após extensivo jejum e sacrifício físico, as quatro almas dos dançarinos do sol
devem ser ativadas para interagir com as almas de outros espíritos e entidades
do mundo através de uma visão. Se o dançarino do sol tem bom coração e se
preparou corretamente, ele pode entrar em um estado visionário de sonho. As
interações que ocorrem entre as almas aí compartilham importantes conhecimentos
e aprendizados que obrigam o dançarino do sol a partilhar com outros para o bem
da vida do povo. Como afirma o artista e educador Lakota Arthur Amiotte:
“Somos mais do que seres físicos, a possibilidade de
interação, barganha, e intercurso no interior de outras dimensões de tempo,
espaço e ser, é a experiência do sonho para os Lakota: uma via alternativa de
conhecimento.”
Enquanto
via alternativa de conhecimento e aprendizado, o sonho tem contribuído com os
povos indígenas de maneiras substanciais. Como com os Lakota, o sonho foi
reconhecido por todas as sociedades ameríndias como um modo de criação e de
entendimento da natureza essencial do relacionamento com o dentro e o fora de
si mesmo. O uso e o contexto do sonho variam amplamente de tribo para tribo e
de região para região. Mas em todo caso, o sonho e a forma mais ritualizada e
estruturada de visão são uma parte integrante do ritual ameríndio, do cerimonial,
e da filosofia da natureza.
Dentre
algumas tribos, os sonhos e sua estruturação através do visionamento eram
importantes o suficiente para garantir um status especial na organização social
de uma tribo, com funções e designações especiais dadas ao interpretador de
sonhos ou às sociedades de sonho que coreografavam as cerimônias de visionamento.
Sonhos
eram tidos como importantes vias para vislumbrar o futuro, reencontrando aquilo
que havia sido perdido, entendendo a causa de desarmonias psicológicas, e a
origem de necessidades e desejos que deveriam ser honrados. Por toda a América
indígena, os sonhos e o sonhar eram considerados essenciais ao sucesso e à
felicidade na vida. Essa valorização dos sonhos estabelece o contexto
psicológico e social necessário para receber, relembrar e incorporar os sonhos
na realidade da vida cotidiana.
De
fato, os sonhadores indígenas, num contexto social que valorizava os sonhos,
desenvolveram amplas habilidades para planejar e manipular o conteúdo de seus
sonhos em direção a um resultado desejado. Em toda tribo havia recompensas
culturais e sociais para sonhos que ajudavam as pessoas. E através da
recompensa aos sonhos culturalmente significantes, os índios reforçavam a
função do sonhar na estrutura de seus seres sociais e culturais. Com tais
incentivos, os sonhadores indígenas ativamente procuravam apanhar qualquer
canção ou objeto de sonho que pudesse simbolizar algum aspecto do senso mais
profundo de si mesmos, de seu povo, de sua tribo, ou de seu clã. Foi através de
tais sonhos e visões que os índios criaram significativos rituais, cerimônias
ou costumes, em nível pessoal e grupal, muitos deles ainda desempenhados hoje
em dia. Os índios também deram formas criativas a seus sonhos através da arte,
da música, da dança, da narrativa, da poesia, do ritual e da cerimônia. É
através da arte que os povos indígenas continuam a comunicar seus sonhos hoje
em dia.
No
geral, os índios efetivamente usaram os sonhos numa grande variedade de
situações de resolução de problemas e aprendizado que os levaram ao
autoconhecimento. Para se alcançar isso foi necessário o desenvolvimento de uma
compreensão prática e direta de uma ecologia da mente e do espírito raramente
igualada na contemporaneidade. Desde as primeiras eras, as crianças foram
condicionadas, não apenas a reverenciar seus sonhos, mas também a aprender como
manipulá-los em direção a resultados desejados. Em resumo, muitos índios
aprenderam a sonhar visando um efeito. Compreendendo seus medos, suas
esperanças, suas ambições, e suas deficiências através da exaltação e do
aprendizado de seus sonhos, muitos índios desenvolveram uma natureza resoluta e
autossuficiente que os habilitaram a lidar com situações estressantes e
enfrentar as provações e atribulações de suas vidas com alto grau de
integridade.
Este
legado do sonho, que ao tempo do primeiro contato com os europeus era tão
aparente, pode ser revitalizado numa reafirmação contemporânea do processo
educacional indígena. O poder de capacitação para entender e honrar o processo
do sonho dentro do contexto de uma nova forma de educação indígena é um domínio
largamente inexplorado. Hoje em dia, povos indígenas em todas as partes sofrem,
em graus variados, de “esquizofrenia cultural”. Sendo constantemente
confrontados com a adaptação de si mesmos a dois mundos e modos diferentes de
ser causou confusões incontáveis e miséria, bem como disfunção social e pessoal
entre os povos indígenas.
O
processo educacional deve novamente reconectar a juventude indígena com seu
íntimo criador e onírico. Através do processo artístico e da realização do processo
visionário como parte do processo educativo, grandes avanços são possíveis na
abordagem da desintegração cultural, social e pessoal que se tornou parte
significativa das vidas de muitos povos indígenas hoje em dia. Negar a
importância espiritual e psicológica do sonho, e não exaltar seu lugar no
processo educativo, leva à atrofia de um processo elementar do aprendizado
humano. Assegura que uma esquizofrenia cultural/social continuará a se
manifestar entre os ameríndios e a cobrar seu pedágio em sangue, sejam eles
jovens ou velhos, nas reservas ou nas cidades, miscigenados ou não.
A
chave para tal dilema existencial descansa, em parte, no aprendizado e no
entendimento da aplicação do processo criativo do visionamento de um modo
direto e significativo num cenário educacional indígena contemporâneo. Visões
são essenciais: são integrantes do éxito individual e comunal, e são
fundamentais para a evolução da consciência e do desenvolvimento humanos.
Introdução do capítulo VI de
Look to the mountain – an ecology of indigenous
education
de Gregory Cajete
Kivaki Press, Rio Rancho,
New Mexico, USA, 1994.
Tradução: Charles Bicalho